Até o pescoço no tanque de tubarões

Úrsula Vidal é jornalista, ativista política e Secretária de Cultura do Pará

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Certa vez, minha filha usou uma metáfora dramática para ilustrar determinada situação: “mãe, não dá pra entrar sangrando num tanque de tubarões”. E eu, sempre mais afeita a eufemismos do que a hipérboles, fiz cara de espanto. Entre um “credo”e um “que horror”, ensaiei a reprimenda pelo exagero da imagem, causando risadas e nenhum efeito atenuador. O fato é que o tal tanque jamais me saiu da cabeça. E chego a pensar que estamos enfiados nele até o pescoço; ora como predadores, ora como refeição.
Há uma profusão de teses que encaram corajosamente a complexidade de nosso comportamento cruel e infantilizado quando reagimos ao estímulo do algoritmo. Queimar na fogueira corpos, governos e reputações causa eflúvios de prazer, sobretudo quando os likes se reproduzem vertiginosamente, a cada adesão ao achincalhamento. São campos complementares da psique a receber estímulos de recompensa: sou justo, sou querido, corajoso, popular, faço parte. E nessa ciranda arriscada onde também ondulam sentimentos como a frustração, a raiva e o medo, quem mais lucra com nosso engajamento em causas é um minúsculo grupo de homens brancos e gananciosos que já viram suas fortunas aumentar em alguns bilhões de dólares, desde a eleição de Donald Trump. O plano tem dado certo e as apostas dobram cada vez mais rápido.
Não raro, nos sentimos os justiceiros de três mil dentes a ferir de morte os inimigos da democracia, os homens da guerra, os fascistas, os misóginos. Mas enquanto mordemos, somos eviscerados no Big tanque que usa nossos dados, nosso tempo e nossa produção intelectual para anabolizar seu espectro de controle. Sair do tanque para estancar o sangramento seria um posicionamento cívico e politico ou uma renuncia ao enfretamento na casa do inimigo? Sobreviveremos sem esses vasos comunicantes entre nossas imagens publicas ou privadas e os acontecimentos mediados pela nuvem de desinformação? Sobreviveremos sem os likes? Sem o quentinho da bolha co-habitada por nossos iguais e semelhantes?
Na semana em que o Governo Federal recuou da decisão de fazer o certo pressionado pelo duvidoso, nossa respiração ficou em suspenso. E a sensação do caminho sem volta vai nos causando a hemofilia coletiva: nenhum governo governa fora do tanque. É preciso entender a linguagem dos tubarões, seu bailado e seu apetite insidioso e traiçoeiro. Decifrar o desejo insaciável das massas por um punhado de escapismo e ilusão. A verdade é custosa, complexa, multifatorial, maciça e funda. E quem ainda quer se dar ao trabalho de um mergulho quando a superfície é fluida, simples e aderente? Enquanto as imagens do real nos atemorizam com o fogo e as águas produzindo tragédias urbanas num planeta em vertigem, o tribunal dos enganos segue alimentando a fome de milhões de presas virtuais em sangramento lento, contínuo e lucrativo.

Úrsula Vidal é jornalista, ativista política e Secretária de Cultura do Pará

Artigo publicado originalmente em O Liberal